Contratexto
por Renan Luis

EMPILHADO

    Me pego com uma certa frequência tensionando o que representa para mim algo que ainda não ouvi junto àquilo que quero obsessivamente escutar, um gesto a ser internalizado capaz de organizar melodias sinuosas e ritmos vertiginosos. Um aspecto recorrente em minha atual pesquisa como produtor e DJ é a sobreposição de batidas por minuto. Penso em números multiplicativos e instrumentos convencionais somados a texturas e espacialização, e, no campo harmônico, exploro melodias e paisagens complementares, pensando em alturas, timbres e durações.
   
   Começo a montagem de mAdvil pesquisando sonoridades que irão compor a minha biblioteca de samples. Resgato um potente trabalho que moldou parte do meu desenvolvimento como instrumentista e dele faço uma interpretação. É o álbum Voodoo, de D'Angelo, lançado na virado do milênio como uma revelação sonora e um consistente contraponto ao que era sugestivo na perspectiva musical hegemônica, dando uma outra visão sobre o bug do milênio. Contrariando padrões previstos do cenário musical e gerando um desconforto no modo industrial, Voodoo explicitou um refinamento musical categórico que demarca não só um gênero, mas a fusão de muitas expressões musicais. Era aberta não apenas um fresta  para a carreira do músico, mas um portal que redefiniu valores e parâmetros para produções que emergiriam na década seguinte. 

    Imaginando esse atravessamento - o lançamento do álbum - em uma linha do tempo, percebi que para além de suscitar novos gêneros musicais, seus efeitos chegam tanto na música pop de alto consumo quanto na música experimental e periférica. Para essas últimas, criaram-se formas ainda mais consistentes de legitimar pensamentos e estruturas, alargando territórios tanto do mercado musical da época quanto do que estaria por vir.

    Não foi preciso muito tempo: em menos de uma década o espaço seria ocupado por novas produções artísticas, pois o tempo da vida precisou se quantizar pelos BPMs da música. Essa movimento possibilitou muitos estilos musicais a tomarem forma. Um exemplo é o footwork, também conhecido como chão de pedra, um estilo que desperta uma escuta que está para além de um andamento acelerado, que gera uma condição de absorção de elementos sonoros de uma outra ordem, muitas vezes alucinógena. Uma das suas principais características é seu o modo inventivo de deformar pulsações e de refazer samples, relacionando música concreta e a música de baile: Soul, Funk e R&B. Cito aqui o Dub como referência da música concreta, pois seu desenvolvimento como estética eletrônica aconteceu em um tempo em que os gestos e a manualidade ao misturar músicas e outros objetos sonoros se dava por uma caminho do improviso, da experimentação e de uma noção de coletividade em sua composição.

    Observando as práticas atuais, percebo o uso de técnicas sob a esteira do desenvolvimento digital, dando amplo acesso às ferramentas de produção musical; evidentemente não se contempla aí todo um espectro de artistas, mc’s e produtores. Por um lado, há uma explosão de produções que ganham mais visibilidade e, por outro, a prática coletiva se esvai, condicionando um perfil de produção individual, ágil, e de fácil detecção para a industria. Uma dessas técnicas, o single como formato, que num passado era uma limitação relacionada à capacidade de armazenamento de uma música num cilindro de cera ou em um vinil, acaba tomando um outro uso. Ele tanto enquadra gêneros quanto modela estilos . Ele diminui o tempo de percepção de uma obra mais extensa, dado os padrões de pragmatismo artístico impostos pelo consumo, toma o peso de um álbum. Há um enfraquecimento de dois fatores de um processo autoral: a experimentação na linguagem e a consistência do processo artístico.

    Quando me torno para a condição de produção atual, visto que sou um produtor nos tempos e termos atuais, o que guia meu processo criativo são estímulos que ativam a memória no corpo. A possibilidade de coreografa-los traz algum sentido em produzir música para o corpo mexer, seja numa pista de dança ou numa performance.

    Mencionei anteriormente o  footwork, que nasce no norte global da América, diretamente dos guetos de uma maioria minorizada de Chicago. Falo agora do Funk Brasileiro, que há décadas vem se desenvolvendo nas práticas coletivas das periferias, resistindo ao apagamento cultural do sistema e ressignificando todo um trajeto diaspórico que operava sobre as bordas. Cada vez mais expressivo e diverso, tendo desenvolvido especificidades estéticas em diferentes regiões do Brasil, vejo-o como um grande acontecimento que, em paralelo ao estadunidense, reforça novos códigos sem distinguir corpo e música. Do ponto de vista da impacto artístico, ambos os estilos contribuem generosamente para uma música do século XXI com uma forma muito sustentável do ponto de vista estético e não normativo, uma música que mira muito mais o pé do que a cabeça.

    Dentro do que consegui perceber com a minha auto crítica de um primeiro álbum, elaborado para ser um álbum de música de pista, acredito que houve um esforço e reconhecimento do meu processo para atravessar esse obstáculo de fragmentação da produção fonográfica, e muita liberdade na misturas dos timbres, ritmos, estéticas, desejos de escuta. Acredito que consegui abrir o meu próprio portal para seguir produzindo música eletrônica com muita curiosidade.